Por trás do violoncelo: o homem, a música e a paixão de Mikhail Shumov
A poucos dias de subir ao palco para interpretar o desafiante e avassalador Concerto para Violoncelo n.º 1 de Saint-Saëns, sob a batuta do maestro Pablo Urbina, conversámos sobre o momento especial que é tocar a solo, a paixão incondicional pelo violoncelo e as pontes musicais que unem o romantismo francês à sua alma russa e ao coração algarvio.
Chama-se Mikhail Shumov e é o chefe de naipe de violoncelos da Orquestra do Algarve desde 2013. Nasceu em Moscovo, formou-se no prestigiado Conservatório Tchaikovsky e já tocou nos palcos por todo o mundo. Nos próximos dias, troca a sua posição habitual na orquestra pelo foco da ribalta, para um dos maiores desafios de um músico: o concerto a solo.
De uma memória de infância que despertou o amor pelo instrumento aos conselhos para os jovens músicos, eis um retrato sincero do homem por trás do violoncelo.
Caro Mikhail, muito obrigado pela sua disponibilidade para estes dois dedos de conversa a tão poucos dias da sua atuação a solo no Concerto para Violoncelo n.º 1 em Lá menor, op. 33, de Saint-Saëns, com a Orquestra do Algarve e direção do maestro Pablo Urbina.
Bom dia. Obrigado pelo convite.
Na OA desde 2013 como chefe de naipe de violoncelos, imagino que tocar a solo seja sempre uma ocasião que se reveste de uma aura muito particular. O que sentiu quando recebeu o convite para interpretar este magnífico repertório?
É verdade, este concerto do Saint-Saëns é muito bonito e apresenta bastantes desafios. Eu adoro tocar a solo com a orquestra, o que não acontece muitas vezes, pelo que fiquei feliz e grato por esta oportunidade.
O programa do concerto tem como corolário esta peça icónica do Saint-Saëns, cheia de energia e lirismo. O que é que mais o inspira pessoalmente nesta obra, e porquê?
O maior desafio é mostrar todos os caracteres que o Saint-Saëns escondeu dentro desta obra. Como disse - e bem - esta peça tem momentos líricos, momentos cheios de energia, paixão e também momentos de tragédia e de alegria. E tudo isto dentro duma obra de 21 minutos. Por isso sinto-me inspirado para mostrar os diferentes caracteres ao público.
E o público cheio de expectativa para o escutar. Como ou de que forma irá a obra espelhar e projetar a sua paixão pelo violoncelo?
É muito simples: o violoncelo é um instrumento com uma tessitura muito abrangente, englobando as tessituras das várias vozes humanas (das mais graves às mais agudas), permitindo explorar diferentes emoções.
Estou a partir do princípio de que o violoncelo é a sua paixão musical.
Sim, tenho grande paixão pelo meu instrumento.
Considerando a enorme exigência necessária, acha possível ser músico profissional sem paixão?
Para mim, não é possível.
Falando agora um pouco mais em detalhe deste Concerto para Violoncelo n.º 1 do Saint-Saëns, é famoso pela estrutura em três andamentos, com um allegro vivo a rebentar de virtuosismo. Como é que se prepara tecnicamente para os desafios do violoncelo nesta peça, sobretudo a propósito da formação tão rigorosa que teve no Conservatório Tchaikovsky?
Para mim, este concerto tem somente um andamento com três partes ligadas entre si. Neste concerto, tudo está misturado de forma que não dá para separar, nem para parar em sítio algum. Relativamente à técnica - graças aos meus professores e colegas - desenvolvi competências nesta área. Tudo é possível com paciência, esforço e dedicação.
A preparação especifica para este concerto é muito diferente da sua rotina diária como músico profissional da OA?
É diferente, porque a técnica de tocar a solo e dentro de um grupo são díspares.
E suponho que bastante, mesmo. Saint-Saëns compôs esta obra em 1872, inspirado na França do século XIX, embora haja quem diga notar-se alguns ecos clássicos de Beethoven. Como músico russo, com raízes na tradição de Tchaikovsky, Rachmaninoff, Shostakovich, iremos de alguma forma encontrar paralelos entre o romantismo francês e a tradição eslava na sua interpretação? Ainda para mais sabendo o que estes dois compositores pensavam sobre a obra.
Não tenho conhecimento de nenhuma publicação sobre este concerto nos comentários de Tchaikovsky nem de Rachmaninov, mas muitos compositores daquela altura diziam que este era o melhor concerto para violoncelo escrito até à data. Naquela época, houve muita influência da cultura francesa na Rússia, nomeadamente nas artes (compositores, poetas, músicos). Estes passavam bastante tempo em França e em S. Petersburgo e partilhavam ideias uns com os outros. Por isso considero que existem algumas semelhanças na linguagem romântica musical francesa e russa.
A peça tem momentos de grande intimidade no andante e uma grande explosão no finale. O que sente nesses momentos de tão intensa sensibilidade?
Sinto-me muito emocionado, sendo que as emoções variam em cada performance, segundo o contexto em que este está inserido. Contudo, considero que o mais importante são as emoções que o concerto poderá despertar no público.
O concerto acontece no AP Eva Senses Hotel em Faro no dia 30 de outubro, no Centro Cultural de Lagos a 31, e no dia 1 de novembro, no Auditório Carlos do Carmo, em Lagoa sempre sob a batuta de Pablo Urbina. Como músico russo a viver no sul de Portugal, será que nesta peça de Saint-Saëns – com o seu equilíbrio entre o fogo romântico e a elegância francesa – irá vislumbrar-se alguma Portugalidade do próprio Mikhail?
Sem dúvida. A paixão portuguesa está bem patente na minha performance, contudo também é resultado do trabalho com todos os músicos e maestro presentes em palco.
Como violoncelista, já tocou em palcos tão variados, da Rússia ao Canadá. O que é que torna especial apresentar este concerto no Algarve, com salas tão intimistas e diferentes como o AP Eva Senses Hotel em Faro, o Centro Cultural de Lagos e o Auditório Carlos do Carmo, em Lagoa.
Como referiu, as salas no Algarve são maioritariamente mais intimistas, havendo maior proximidade entre os músicos e o público. Pessoalmente, gosto de sentir o público, sendo mais fácil partilhar as emoções com todos os presentes.
São três espaços com qualidades muito distintas. Na sua opinião, até que ponto a sala define o público?
Define bastante! O formato do concerto e as características das salas de espetáculo atraem públicos diferentes.
Ao longo da carreira, trabalhou com orquestras como a Gulbenkian sob a direcção de Lawrence Foster e Joana Carneiro. O que destaca da dinâmica, entre a Orquestra do Algarve e o maestro Pablo Urbina, desenvolvida para estes concertos, e como é que isso eleva a obra de Saint-Saëns, e sublima a fruição do público?
Todos os maestros, solistas e orquestras são diferentes, tendo perspetivas e ideias musicais distintas, o que enriquece a performance. Assim, acredito que a junção de todas as ideias musicais contribua para três excelentes concertos!
O seu percurso é extraordinário: estudos no Conservatório Tchaikovsky em Moscovo e no Royal College of Music em Londres, prémios internacionais e atuações pelo mundo fora. Como é que esta experiência global – de colaborações com maestros como o Esa-Pekka Salonen a festivais como o Banff – influencia a sua personalidade artística e, em particular a sua interpretação para este concerto?
Como já referi antes, todas as experiências contribuem para o nosso desenvolvimento enquanto músico, sendo difícil atribuir as diferentes influências separadamente.
Voltando um bocadinho às raízes, Mikhail, nasceu em Moscovo e descobriu o violoncelo a ouvir as lições da sua irmã. Pode partilhar uma memória da infância que o tenha marcado fundo e inspirado a seguir esta paixão pela música?
Quando era mais novo ia muitas vezes assistir às aulas de violoncelo da minha irmã. Numa dessas aulas, fiz um comentário espontâneo sobre a performance dela. Por conseguinte, a professora perguntou se eu também queria aprender a tocar violoncelo. Foi assim que tudo começou.
É uma história encantadora. Não resisto a perguntar se a sua irmã também se tornou uma exímia violoncelista como o irmão mais novo que a escutava, e hoje o grande violoncelista, solista deste concerto?
Não, ela também seguiu a área da música, mas noutra vertente. Atualmente é técnica de som, bastante conceituada, em vários teatros dramáticos.
Os seus primeiros estudos como jovem aluno de violoncelo foram com mestres como Zoia Kuimova na Escola de Música Gnesin e Igor Gavrysh no Conservatório Tchaikovsky. Como é que essas experiências iniciais em Moscovo moldaram a sua técnica e o amor pelo violoncelo?
O estudo em Moscovo foi apenas o início. Contudo, as várias experiências performativas e de estudo que tive ao longo da minha carreira, com professores de grande qualidade de Música de Câmara, Quarteto de Cordas, de classe de Orquestra e restantes disciplinas, tanto em Moscovo quanto em Londres, Canadá, Japão, entre outros, foram impactantes no meu percurso e no gosto pelo instrumento.
Antes de se instalar no Algarve, foi principal violoncelista da Orquestra MTCC Pavla Slobodkina e professor na Escola Gnessin. Cá no Algarve é professor de violoncelo, na OA chefe de naipe, e agora solista. O violoncelo é sempre o mesmo, mas e o Mikhail? Várias facetas do mesmo músico?
Sim, sou diferente na escola e na orquestra, sendo que ambas as atividades se complementam. A experiência profissional é uma mais-valia enquanto professor. Contudo, ao ensinar também aprendo, pois acabo por analisar a minha própria forma de estudar, tocar e me preparar para a performance. O que nunca muda é a minha atenção na qualidade do som, que considero ser o aspeto principal na música!
E o público aplaude agradecido. Para além do Saint-Saëns, tem planos para explorar outras obras para violoncelo no futuro com a Orquestra do Algarve ou noutros contextos?
Há planos e ideias, mas não dependem somente de mim. Da minha parte, irei continuar a trabalhar para levar música a todos os públicos, enquanto solista e músico da OA.
Mikhail, com a sua jornada, que conselhos daria a jovens alunos inspirados pela sua história de vida?
Seguir os seus sonhos, fazer os possíveis para tornar os sonhos realidade. Estudar, esforçar-se, amar, viver, ajudar e não parar de acreditar!
Caríssimo Mikhail, obrigado por esta conversa tão sincera e calorosa. Será sem dúvida um concerto memorável! Tem alguma mensagem final que queira deixar a todos os que nos leem e, em especial, ao querido público da AO que nos segue com tanta amizade e carinho, on line e ao vivo nos concertos?
Foi um prazer responder às suas perguntas. Acredito que a música erudita é necessária na vida de todos e deveria ter um cantinho especial nos seus corações. Por isso, sigam a vossa Orquestra do Algarve, sigam a música clássica. Adoramos ver-vos nos nossos concertos! Até breve!
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